segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Cine-Theatro Ypiranga

Conta-se que quando os primeiros filmes chegaram no interior da Rússia, as pessoas não compreendiam os enredos porque não conseguiam enxergar as pessoas “cortadas” ao meio. Os plano e os closes, por mais óbvios que nos possam parecer hoje, fazem parte de uma linguagem que precisa se aprendida. Meu pai contava da época em que estreiou “Cidadão Kane” em Porto Alegre. Ninguém entendia, havia profundas discussões sobre o que seria “Rosebud”. De novo: por mais óbvio que nos possa parecer hoje em dia, o filme foi um fracasso local: latas de película foram jogadas no lixo, em frente aos cinemas.
Mas não é da magia dos filmes que eu quero falar aqui, e sim das salas de exibição com as quais me parece ter acontecido o inverso, as novas gerações não compreendem a linguagem própria que existia em ver um filme em coletividade.
Na quadra da minha casa, havia até os anos setenta o Cine-Theatro Ypiranga que passava filmes de aventuras: faroestes, capa-e-espada, comédias do Mazaroppi, etc.
Nos domingos, o programa das famílias dos arredores era assistir à sessão vespertina dupla, isto é se pagava um ingresso para ver dois filmes. Antes das duas horas, já estávamos todos, colegas de colégio e outros moleques da vizinhança sentados nas primeiras filas enquanto as nossas mães zelosas se sentavam nos bancos mais de trás conversando, pois no cinema todos se conheciam. Passava o baleiro, carregando um tabuleiro preso ao pescoço e se comprava uma caixa de Bonzinhos (umas bolinhas de chocolate crocante que vinham numa caixinha amarela) ou balas de goma Americana. Todos chegávamos uma meia hora antes, só pela farra.
Antes de haver aquelas luzinhas no chão, havia o Lanterninha, funcionário do cinema que portava uma lanterna para indicar o assento para os que chegavam atrasados, mas que também continha a bagunça das turminhas e os avanços dos namorados mais ousados com sua inesperada luz inquisitorial. Nas tardes quentes de verão, os postigos de umas vinte janelas nas paredes laterais eram abertos, pois não havia ar condicionado. Quando o lanterninha fechava as janelas, era sinal de que o filme iria começar...
Propagandas. Certificado de censura do filme a seguir. Trailer. Mais trailer. Canal Cem, um documentário futebolístico com suas imagens gigantes e sensacionais. Até que em um momento aparecia o certificado de censura do filme que tínhamos vindo assistir: gritos e bagunça. Se aparecesse um condor, se fazia xô, xô! Se aparecesse o leão da Metro, se fazia shh! Shh!
Ali eu assisti a primeira versão de Missão Marte no qual o mocinho morria no final para salvar os outros astronautas. Foi a primeira vez que eu percebi que cinema também fazia chorar.
O melhor de tudo era quando arrebentava o filme! Todo mundo no escuro, fazendo gritaria. Assim que a luz voltava (ou o lanterninha apontasse seu facho), baixava um silencio imediato...
E quando terminava o filme, só havia ido a metade da brincadeira. Íamos para casa tomar um café da tarde rápido e voltávamos antes de começar a segunda sessão.
Ao crescer um pouco, a nossa turma já tinha permissão para caminhar um pouco mais e íamos ao Cine Colombo, há umas 10 quadras de distância. Ao crescermos mais um pouco, fizemos umas carteiras de estudante com data de nascimento falsas para ver filmes para maiores e, no Cine Rosário, assistimos a clássicos do cinema nacional como “O Homem de Itu” e “A Estudante que Levou Pau”. Anos mais tarde, fui muito mais longe e vi até um cinema ao ar livre, como aquele do filme “O Paciente Inglês”, no interior do Paraguai. Sim. Tudo isso existiu: eu vi!
Acho que o divisor de águas, que matou o cinema não foi o advento do vídeo-cassete e nem a violência, como muito se apregoa, mas o pornô-intelectual. Quem assiste a “O Império dos Sentidos” ou aos filmes do Pasolini, sai de foco. A partir daí valia mais o que estava sendo dito e não a emoção de compartilhar bons momentos. Cinema, no sentido de película, foi ganhando mais expressão do que cinema, no sentido de local.
Filmes são até legais, mas cinemas... ah, só quem esteve por lá é que viu.
Os anos se passaram, o Cine-Theatro Ypiranga foi casa noturna, bar, igreja evangélica, e hoje voltou a ter o mesmo nome de outrora, mas é uma discoteca. O prédio, felizmente, está tombado pelo patrimônio histórico. A alma se foi, mas a casca, pelo menos, ainda está por lá, abrigando dulcíssimos fantasmas de minha infância.

Um comentário:

Buzz disse...

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Olá velho amigo...!!

Saudades, lembranças... quanta coisa boa hein...?!?

Hoje, estamos ficando sábios (para não dizer "velhos", rsrsr!!!). Pena a distância, esta velha inimiga que afasta as pessoas...!!

Ainda bem que temos as lembranças de outros tempos, para nos manter VIVOS!!!

Grande abraço!!

Marcelo "Buzz"

Ah, num "PS", estou linkando teu blog ao meu!

Assim poderei vir mais vezes!!

Abrassss!
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