sexta-feira, 10 de agosto de 2007

As Marcas

Conta uma velha lenda árabe que a Morte deixa todos os seres humanos passearem pelos jardins da terra por algum tempo antes de os levar.
Para lembrar da maneira correta e do momento exato ela coloca com a sua cimitarra marcas no corpo de cada um dos seus filhos. Por exemplo, se alguém tem uma pinta marrom em um determinado ponto do pé significa que vai ser ceifado por velhice. A marca sob os cabelos indica suicídio. Uma bolinha vermelha em um determinado ponto do peito significa ser atropelado por camelos e assim por diante.
Acontece que essa história de cimitarra é tão velha como a lenda, pois isso era feito dessa forma apenas nos tempos antigos em que a Morte ainda trabalhava de forma artesanal. Hoje em dia existem máquinas modernas que fazem o serviço da forma mais precisa possível. Antes de virmos ao mundo, a máquina nos apanha de dentro de nosso pai, faz as marcas nos tons e locais apropriados e depois nos devolve para que possamos ser depositados como o nosso pai nos fez na barriga de nossa mãe que servirá do vaso que abriga o nosso crescimento. Assim, hoje em dia, não existe possibilidade de dúvidas: se o patrício está marcado para morrer de sede aos trinta e nove anos, não poderá morrer sufocado em uma tempestade de areia aos quarenta. Nos dias de hoje, a Morte não erra jamais.
A única coisa que pode acontecer é uma falha mecânica. Algumas vezes os bebês deixam de ser marcados e vêm ao mundo sem dia e nem maneira prevista para partir. Apenas depois de que passam de uma certa idade avançada ou quando os acontecimentos são absurdos é que a Morte vai perceber o erro, pois ela fatalmente vai pensar que a pessoa tem uma daquelas marcas de longa vida, escondida embaixo da sola dos pés ou dentro da narina.
No entanto, não se pode atribuir esse erro à morte em si, mas às circunstâncias.
Conta-se que certa vez um soldado que lutava nos territórios ocupados era uma dessas pessoas sem marcas que levou mais de setenta tiros até que a Morte percebesse o erro e o levasse para a companhia de Alá.
Em outra oportunidade, um rico mercador desmarcado dirigia sua Mercedes acompanhado de três de suas esposas mais amadas quando o automóvel desgovernou, caiu no lago de um oásis e as esposas vieram a falecer. O mercador depois de dez minutos embaixo d'água conseguiu subir à superfície e vendo que as esposas não retornaram, prostrou-se pedindo para também ser levado. Compadecida, a Morte invés de o levar, devolveu à vida as suas esposas que por possuirem a marca de que deveriam morrer naquela hora e naquele local, apenas acordaram o tempo suficiente para se afogarem novamente. Aqui também não podemos dizer que o erro foi da Morte, que não erra jamais, mas do Destino, uma vez que é do seu feitio pregar peças bizarras, mas isso já é outra história.
Pode-se pensar que ela jamais pára, mas conta-se que nas tréguas das batalhas, a Morte costuma se sentar para descansar, apanha o seu narguilé, acomoda-se em uma almofada e fica a contemplar o mundo durante o tempo suficiente que demora para identificar uma outra marca que exige o seu trabalho. Ela também gosta de jogar: às vezes se encontra com alguém já marcado mas que precisa esperar o momento certo, como um ladrão ou um infiel, que espera a decapitação, por exemplo. E daí, para não tornar a sua presença inconveniente, retira do turbante um baralho de cartas e apresenta ao condenado. Muitas vezes, até o deixa vencer.
Dizem as más línguas que ultimamente a Morte não tem conseguido identificar muito bem as marcas, que ela tem se entregado ao arak e está velha e decrépita. Falam até que ela teria descoberto uma marca no seu próprio corpo que a deixou muito abalada, no entanto isso não passa de mentira. A velha guia de todos os peregrinos, a companheira dos solitários e última esposa dos sheiks está, como sempre, jovem e sadia, tirando o seu véu para todos aqueles que no momento certo se forçam a lhe possuir.
E as marcas continuam nos lugares certos.

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