Aventuras (3)
Lá pelas 10 horas da manhã já havia vaga nos hotéis da cidade de Corumbá. Eu e meus novos companheiros de viagem nos instalamos para um ou dois dias antes de apanhar o trem de volta para Campo Grande, mas nossa expectativa não se confirmou.
O atendente nos informou que aquela seria a semana do navio. Que navio? Ora, o navio para Assunción...
Para turistas, existiam duas maneiras de conhecer o Pantanal por dentro, ou apanhar uma “empurradeira”, uns barcos que empurravam balsas, desconfortáveis, mas também havia um barco que partia uma vez por mês até o Paraguai. Passagem baratíssima, passeio belíssimo. Por coincidência estava chegando naquele dia à cidade e partiria dois dias depois.
Quando o navio atracou no porto, estávamos lá, uma turma enorme de aventureiros de destino incerto, apreciando. Era um navio branco, espanhol, muito maior do que esperávamos. Compramos as passagens e ganhamos o direito de dormir nos camarotes, o que lembrava aqueles filmes de aventuras nos Mares do Sul. Dormir atracado num porto é quente, fedorento e cheio de mosquitos, mas com vinte anos, tudo é festa.
Dividi o camarote de dois beliches com os dois catarinenses que eu havia conhecido uns dias antes e mais um senhor, com quase setenta anos, que tinha se aposentado como engenheiro da Petrobrás. Por recomendação médica, ele tinha que caminhar quatro quilômetros por dia e o fazia com uma velocidade que deixava a nós, os jovens, sempre correndo atrás, ofegantes.
Chegou o grande dia. Deixamos o porto e a brisa do rio nos refrescou das noites mal dormidas. Os brasileiros do navio, logo se enturmaram com os estrangeiros. Como me viro em francês, virei o tradutor naval de um canadense e uma francesa que logo estavam também cantando chorinho no convés, enquanto jacarés e tuiuius passavam logo além da amurada.
No final do dia, eu estava numa roda com os dois catarinenses e um cara de Recife. Lá pelas tantas, o assunto virou para “porradinhas”. Como inventei de falar que não sabia o que era isso, eles decidiram me batizar no próximo porto, que era Ponta Porã. O navio pararia apenas 15 minutos. Desembarcamos, entramos num bar, pedimos uma garrafa de cachaça vagabunda e umas sodas. Para quem não sabe, “porradinha” consiste em misturar soda e cachaça meio a meio, fechar a boca do copo e bater contra a coxa para espumar, bebendo em um único gole. Viramos uma garrafa e antes de perder o navio, estávamos de volta, os quatro completamente bêbados, acho que foi o único porre com “P” maiúsculo que eu tomei na vida. Só lembro de conversar enrolando a língua com a francesa sobre “l’ivresse des brésiliens”.
Naquela noite, acordei no meu beliche e percebi que o navio estava atracado. Saí para o corredor e encontrei uma camareira paraguaia me falando da fábrica de cimento que se via no horizonte, orgulho nacional. Ali foi o ponto em que a viagem começou a ficar sui generis.
No dia seguinte, o navio começou a atracar em vilarejos ao longo do rio. Como não havia porto, a operação consistia em ir se aproximando da margem, até que o navio batia e tombava com uma imensa onda que inundava todas as escotilhas abertas. Foi assim que encharcamos o chão do nosso camarote umas duas vezes até aprender. Uma vez atracados, colocavam-se tábuas e “los campesinos” subiam à bordo se equilibrando nelas.
Aquele barco era o único transporte local daquelas cidadezinhas no meio do nada que surgiam a nossa proa. Já no segundo dia, o convés superior virou uma feira livre. Os paraguaios subiam à bordo com objetos insólitos, como cabeças de boi descarnados e toda a sorte de bugigangas e as vendiam, ali mesmo.
Ah, tinha mais um detalhe. À bordo ainda havia uma excursão de argentinos, de Buenos Aires, que pensavam que estavam num transatlântico da década de 20. À noite, faziam bailes no salão de festas, com damas usando luvas de cetim. Dentre aquela pobreza toda, lá pelas tantas se ouvia pelo auto-falante do navio: “Ahora vamos empezar la... caza al tesoro!” E la nave va...
Depois de muitas povoações perdidas, muitas tsunamis, muitos soldados adolescentes com espingardas de caça e descalços e muitos Generais Stroessneres, pois eram anos de chumbo por lá e tudo se chamava com o nome do ditador, chegamos à Concepción, a maior cidade do interior paraguaio.
Cidadezinha de estilo espanhol, deserta, economia estagnada, que fazia o Brasil parecer uma potência nacional. Foi lá que vi um cinema ao ar livre. Acho que deve ter sido um dos últimos das Américas, proveniente de um tempo que não volta mais.
Tudo transcorreu normalmente naqueles dias. Perdidos entre já velhos amigos que havíamos ali conhecido, sentados em frente à ponte e cantando acompanhados de um violão providencial que não sei quem trouxera, abanávamos para todos os navios que passavam no sentido contrário. Jovens inconseqüentes, vendo passar um rio belíssimo com margens distantes e grandiosos entardeceres.
Três dias depois de Corumbá, chegamos à Assunción que me pareceu, assim, vista distante, com a minha tão conhecida Porto Alegre, quando a enxergava de pescarias, lá da Ilha do União.
Algo havia mudado. Ao desembarcar e desembaraçar-me da alfândega, fiquei com uma daquelas sensações de que o tempo havia se cristalizado dentro de mim de uma forma bela e positiva.
Nunca antes e nem nunca mais depois fiz uma viagem tão estranha e, por incrível que pareça, tão maravilhosa.
O atendente nos informou que aquela seria a semana do navio. Que navio? Ora, o navio para Assunción...
Para turistas, existiam duas maneiras de conhecer o Pantanal por dentro, ou apanhar uma “empurradeira”, uns barcos que empurravam balsas, desconfortáveis, mas também havia um barco que partia uma vez por mês até o Paraguai. Passagem baratíssima, passeio belíssimo. Por coincidência estava chegando naquele dia à cidade e partiria dois dias depois.
Quando o navio atracou no porto, estávamos lá, uma turma enorme de aventureiros de destino incerto, apreciando. Era um navio branco, espanhol, muito maior do que esperávamos. Compramos as passagens e ganhamos o direito de dormir nos camarotes, o que lembrava aqueles filmes de aventuras nos Mares do Sul. Dormir atracado num porto é quente, fedorento e cheio de mosquitos, mas com vinte anos, tudo é festa.
Dividi o camarote de dois beliches com os dois catarinenses que eu havia conhecido uns dias antes e mais um senhor, com quase setenta anos, que tinha se aposentado como engenheiro da Petrobrás. Por recomendação médica, ele tinha que caminhar quatro quilômetros por dia e o fazia com uma velocidade que deixava a nós, os jovens, sempre correndo atrás, ofegantes.
Chegou o grande dia. Deixamos o porto e a brisa do rio nos refrescou das noites mal dormidas. Os brasileiros do navio, logo se enturmaram com os estrangeiros. Como me viro em francês, virei o tradutor naval de um canadense e uma francesa que logo estavam também cantando chorinho no convés, enquanto jacarés e tuiuius passavam logo além da amurada.
No final do dia, eu estava numa roda com os dois catarinenses e um cara de Recife. Lá pelas tantas, o assunto virou para “porradinhas”. Como inventei de falar que não sabia o que era isso, eles decidiram me batizar no próximo porto, que era Ponta Porã. O navio pararia apenas 15 minutos. Desembarcamos, entramos num bar, pedimos uma garrafa de cachaça vagabunda e umas sodas. Para quem não sabe, “porradinha” consiste em misturar soda e cachaça meio a meio, fechar a boca do copo e bater contra a coxa para espumar, bebendo em um único gole. Viramos uma garrafa e antes de perder o navio, estávamos de volta, os quatro completamente bêbados, acho que foi o único porre com “P” maiúsculo que eu tomei na vida. Só lembro de conversar enrolando a língua com a francesa sobre “l’ivresse des brésiliens”.
Naquela noite, acordei no meu beliche e percebi que o navio estava atracado. Saí para o corredor e encontrei uma camareira paraguaia me falando da fábrica de cimento que se via no horizonte, orgulho nacional. Ali foi o ponto em que a viagem começou a ficar sui generis.
No dia seguinte, o navio começou a atracar em vilarejos ao longo do rio. Como não havia porto, a operação consistia em ir se aproximando da margem, até que o navio batia e tombava com uma imensa onda que inundava todas as escotilhas abertas. Foi assim que encharcamos o chão do nosso camarote umas duas vezes até aprender. Uma vez atracados, colocavam-se tábuas e “los campesinos” subiam à bordo se equilibrando nelas.
Aquele barco era o único transporte local daquelas cidadezinhas no meio do nada que surgiam a nossa proa. Já no segundo dia, o convés superior virou uma feira livre. Os paraguaios subiam à bordo com objetos insólitos, como cabeças de boi descarnados e toda a sorte de bugigangas e as vendiam, ali mesmo.
Ah, tinha mais um detalhe. À bordo ainda havia uma excursão de argentinos, de Buenos Aires, que pensavam que estavam num transatlântico da década de 20. À noite, faziam bailes no salão de festas, com damas usando luvas de cetim. Dentre aquela pobreza toda, lá pelas tantas se ouvia pelo auto-falante do navio: “Ahora vamos empezar la... caza al tesoro!” E la nave va...
Depois de muitas povoações perdidas, muitas tsunamis, muitos soldados adolescentes com espingardas de caça e descalços e muitos Generais Stroessneres, pois eram anos de chumbo por lá e tudo se chamava com o nome do ditador, chegamos à Concepción, a maior cidade do interior paraguaio.
Cidadezinha de estilo espanhol, deserta, economia estagnada, que fazia o Brasil parecer uma potência nacional. Foi lá que vi um cinema ao ar livre. Acho que deve ter sido um dos últimos das Américas, proveniente de um tempo que não volta mais.
Tudo transcorreu normalmente naqueles dias. Perdidos entre já velhos amigos que havíamos ali conhecido, sentados em frente à ponte e cantando acompanhados de um violão providencial que não sei quem trouxera, abanávamos para todos os navios que passavam no sentido contrário. Jovens inconseqüentes, vendo passar um rio belíssimo com margens distantes e grandiosos entardeceres.
Três dias depois de Corumbá, chegamos à Assunción que me pareceu, assim, vista distante, com a minha tão conhecida Porto Alegre, quando a enxergava de pescarias, lá da Ilha do União.
Algo havia mudado. Ao desembarcar e desembaraçar-me da alfândega, fiquei com uma daquelas sensações de que o tempo havia se cristalizado dentro de mim de uma forma bela e positiva.
Nunca antes e nem nunca mais depois fiz uma viagem tão estranha e, por incrível que pareça, tão maravilhosa.
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